RN esconde milagre do Padre Cícero *
PASSOU EM BRANCO na região o transcurso, nesta terça-feira, 20, ontem, do aniversário do falecimento do padre Cícero Romão Batista, o santo popular do Nordeste, ocorrido em 1934. Ele deveria colocar na ordem do dia uma revisão histórica fantástica que está em curso com envolvimento do Rio Grande do Norte: o Vaticano reexamina as punições que aplicou contra o sacerdote, em função de conflito que durante muitos anos o opôs ao bispo de sua época em Fortaleza, hoje ilustre desconhecido. Um processo jurídico que tem andamento com a colaboração do monsenhor Francisco de Assis Pereira, natalense que se destaca como o maior postulador de causas de santos desde que conseguiu a beatificação dos mártires de Natal, Cunhaú e Uruaçu, pode em poucos anos promover a beatificação do "Padim Ciço", numa das maiores reversões já viabilizadas pela Santa Sé: de excomungado, o sacerdote deverá ser entronizado no time dos santos oficiais da igreja católica apostólica romana. Esta situação interessa ao Rio Grande do Norte por três motivos. Em primeiro lugar, a exemplo do que acontece em outras unidades federativas nordestinas, o "Santo Padinho Ciço", cantado pelo grande Luiz Gonzaga, o "Rei do Baião", tem muitos devotos no Rio Grande do Norte, como o demonstra o grande número de romeiros que todo ano se mandam daqui para Juazeiro do Ceará a fim de homenageá-lo cristamente. Em segundo lugar, é preponderante no processo em curso a colaboração do monsenhor Assis. O atual bispo de Juazeiro o procurou e fez com que a Santa Sé o incluísse com destaque no processo que investiga toda a vida do legendário sacerdote cearense. Muitos conterrâneos não se dão conta, mas esta busca é mais um reconhecimento à singularidade que monsenhor Assis singulariza num campo particularmente complexo das decisões da igreja. Quem leu "O advogado do Diabo", do ex padre australiano Morris West, faz idéia de como a igreja age nestas situações. A terceira razão é ainda mais interessante. Trata-se de um milagre do santo popular que se esconde no interior do Rio Grande do Norte. Todo conflito que levou à excomunhão do Santo Nordestino foi projetado a partir das interpretações dadas aos milagres atribuídos a padre Cícero, principalmente o do sangue vertido por beatas em sua presença. Inúmeros "ex-votos" colocados em dependências da grande estátua com que ele foi homenageado em Juazeiro, um dos maiores monumentos religiosos do mundo, perdendo em tamanho apenas para o Cristo Redentor e para a Santa Rita de Cássia de Santa Cruz do Inharé, confirmam o testemunho de católicos nordestinos que lhe atribuem graças propiciadas pelo padre. O processo de reabilitação do padre exige milagres menos corriqueiros para justificarem a revisão do "status" imposto pela punição vaticana.
É aí que o Rio Grande do Norte pode entrar, inclusive com direito a inserir o padre cearense num roteiro potiguar de turismo religioso que hoje se projeta a partir dos cenários dos martírios de Cunhaú e Uruaçu, da igreja do Galo, no Seridó, da igreja da serra do Lima, em Patú, no Oeste, e mais recentemente com a inauguração da estátua de Santa Rita de Cássia em Santa Cruz. A ocorrência de um milagre que vincula o padre Cícero ao Rio Grande do Norte veio a público há três anos. Ele tem cenário e pode, com algum investimento, criar, em pleno encontro das regiões Central, do Potengí e do Seridó, na zona rural de Cerro Corá, um espaço para visitação por fiéis. Trata-se de um sítio à margem de uma estrada federal ainda não pavimentada que liga Lajes a Cerro Corá. Ela segue sempre que possível o traçado do que deveria ser a "Ferrovia do Seridó", um ramal que ligaria Caicó a Lajes para no início do século passado propiciar um melhor escoamento à produção de algodão Mocó até o porto de Natal, por onde era exportado. Nunca efetivamente implantada, a estrada legou à região alguns monumentos interessantes, como um túnel, duas obras de arte básicas para a construção de pontes, uma estação hoje transformada em igreja, na localidade de "Recanto", e vários cortes de terra para suavizar inclinações em favor da passagem do trem. Conta a história que aí pelos anos vinte do século passado o dono do sítio resolveu largá-lo por não mais conseguir conviver com a falta de água na região. Ocorreu-lhe que a salvação estaria perto do padre Cícero, e ele se mandou para Juazeiro, onde pediu que o sacerdote lhe indicasse uma terra boa, dotada de água, porque já não agüentava a secura de Cerro Corá. O padre disse que ele estava redondamente enganado, porque a água estava justamente em sua morada. O homem retrucou, lembrando que vivia nos contrafortes da Borborema potiguar e que ali não havia água, exceto quando chovia. Sem nunca ter ido a Cerro Corá, padre Cícero lhe garantiu que havia muita água diante de sua casa e lhe recomendou voltar, contar onze passos a partir da porta da morada e cavar, que ali encontraria água. O agricultor retrucou, dizendo que exatamente ali havia uma pedra dez vezes maior do que a casa. "Pois bem! Cave ao redor e debaixo da pedra, e achará", recomendou-lhe o padre. Mesmo desconfiado, o homem voltou para Cerro Corá, contou os passos, cavou e encontrou um veio que até hoje oferece água aos moradores das redondezas. Conheci o local há três anos, casualmente, quando me aventurei a conhecer a "Ferrovia do Seridó", e ouvi depoimentos de moradores que atestam o episódio. Ele já interessou à diocese de Caicó e ao monsenhor Assis. No ano passado, quando contei a história ao prefeito Raimundo Marcelino Borges, de Cerro Corá, ele confessou absoluta ignorância em relação ao fato, mas interessou-se em mandar pesquisar para inseri-lo no turismo religioso local. Durante o festival de inverno que a prefeitura promoveu este ano em Cerro Corá, o milagre já estava sendo disseminado entre os católicos locais e os visitantes atraídos pelo evento. Não sei se a prefeitura fez o que prometeu em termos de conhecer melhor o episódio, inclusive gravando os depoimentos dos sucessores do agricultor orientado por padre Cícero. Também não sei se Raimundo Marcelino tentou conhecer o sítio, como prometeu, para, a partir de então, interagir melhor com o milagre norte-rio-grandense do sacerdote cearense, por coincidência, vinculado à água, cuja escassez tanto afligiu o Nordeste brasileiro durante séculos. Já falei a respeito com o arcebispo metropolitano, Dom Matias Patrício, que não tem ascendência sobre a estrutura da igreja católica em Cerro Corá porque a paróquia local está vinculada à diocese seridoense, mas é filho do vizinho município de Santana do Matos, e demonstrou interesse no episódio em função da vontade de investir na estruturação do turismo religioso no Rio Grande do Norte. Um seu entendimento com a diocese caicoense pode até resgatar um relatório oficial que seus enviados produziram quando foram levados a conhecer o sítio, a fonte d'água e a história contada pelos herdeiros do beneficiário do milagre. E como o governo federal está num pé e noutro para asfaltar a estrada, é possível que dentro de alguns anos o local comece a receber romeiros.
* Artigo publicado na página de "Opinião", do diário "Novo Jornal", em 21 de julho de 2010